segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Raimundo Fagner e o disco mais problemático da MPB.

Manera, Fagner, manera!

O cantor cearense Raimundo Fagner Cândido Lopes despontou na cena musical brasileira no início dos anos 70, devido em grande parte à regravação de Mucuripe (Fagner/Belchior) por Elis Regina, que acabou estourando nas rádios do país. Em 1973, Fagner gravou pela Philips o seu primeiro LP, Manera Fru Fru Manera, que corre o risco de entrar para o livro dos recordes como o mais problemático da história da música popular brasileira. O fantástico álbum contou com participações de Nara Leão, Bruce Henry e o percussionista Naná Vasconcelos (que se tornara, tempos depois, mundialmente respeitado). Faixas como "Último Pau-de-Arara", "Pé de Sonhos", "Como se fosse", "Penas do Tiê", "Nasci para chorar" (pinçada do repertório de Roberto Carlos) e "Mucuripe" chamaram a atenção da crítica de todo o país.



No entanto, o disco foi puxado pela canção "Canteiros" (poema de Cecília Meirelles musicado por Fagner), que se tornou um mega-sucesso, campeão de execuções nas rádios de todo o Brasil. Deu-se início, poucos tempo depois, à série de problemas que o disco viria a causar. As três filhas de Cecília Meirelles entraram com uma queixa-crime contra a Philips e contra o compositor por ter modificado e usado no seu disco um dos poemas da poetisa, sem ter colocado o nome dela nos créditos. O disco foi retirado de circulação e, posteriormente, relançado com a faixa "Cavalo-ferro" no lugar de "Canteiros". A partir daí, o LP original com a canção "Canteiros" tornou-se cult, passando a ser - juntamente com "Louco por você", o primeiro e renegado disco de Roberto Carlos - o artigo mais procurado dos sebos existentes nas grandes cidades, e vendido por altas somas.

O mesmo incidente viria a se repetir anos mais tarde, em 1978, com o disco "Eu canto", que continha o estrondoso sucesso "Revelação". No referido álbum, Fagner havia musicado "Motivo", outro poema de Cecília Meirelles, e novamente não tinha dado os créditos à autora. Após nova batalha na justiça, o disco de 78, no auge das vendas, também foi retirado de circulação e prensado novamente sem a faixa "Motivo" - e, no lugar dela, incluiu-se "Quem me levará sou eu", música de Dominguinhos e Manduka, com a qual Fagner havia ganhado há pouco um festival de música. O título daquele disco também teve que ser modificado, pois "Eu canto" era justamente o início do primeiro verso do poema de Cecília Meirelles, não tinha sentido manter o referido título sem a música presente no álbum . A nova prensagem saiu com o título "Quem viver chorará", nome de uma das faixas. Sobre essas brigas na justiça, Fagner afirmou em entrevista à Revista Ele Ela de janeiro de 1981 o seguinte: "Maria Matilde (uma das filhas da poetisa) queria que eu pagasse uma nota por coisa que acredito um absurdo. (...) No fundo, estou divulgando a obra de Cecília Meirelles. Meu trabalho e de meus parceiros não estão aquém do trabalho de Cecília, com todo respeito. A obra de Cecília está bem situada no meu trabalho. Mas Maria Matilde está abusando com seus sentimentos recalcados (...). Legalmente, ela não tinha muito a receber: uma nota tão pequena que nem recupera o tempo que perdeu e o ódio que destilou. Este incidente, de certa forma, cortou também minha espontaneidade de trabalhar com os versos de Cecília Meirelles, pois tinha mais três músicas para gravar, mas perdi o gosto. Maria Matilde ganharia mais se deixasse eu cantar essas músicas".


Somente em 2000 (exatos 27 anos após o lançamento de "Canteiros") é que Fagner - após acordo com os familiares da poetisa - pôde regravar a canção num CD duplo ao vivo de releituras de sucessos. No entanto, a versão original contida no LP "Manera Fru Fru Manera" jamais foi liberada para relançamento, e o CD remasterizado permanece com a faixa "Cavalo Ferro" no lugar de "Canteiros". O mesmo aconteceu com os discos "Orós" (1977) e "Eu canto" (1978), que foram relançados recentemente sem as faixas "Epigrama nº 9" e "Motivo", respectivamente, devido à não-liberação por parte da família Meirelles.

Em 1999, um novo imbróglio se criou em torno de "Penas do Tiê", uma das canções mais conhecidas de Fagner, também incluída no disco "Manera Fru Fru Manera". Fagner alegou, quando do lançamento do disco, em 1973, que "Penas do Tiê" era uma adaptação sua do folclore, de uma canção recolhida do domínio público, mas na verdade ela nada mais é do que uma regravação de "Você", uma composição de Hekel Tavares (1886-1969) e Nair Mesquita, editada em 1928 e dedicada à cantora lírica Gabriella Besansoni Lage. O "deslize" de Fagner, a princípio apontado pelo jornalista Tárik de Souza, do jornal do Brasil, demorou três décadas para ser descoberto, e só o foi porque, no final dos anos 90, Alberto Hekel Tavares (filho do compositor Hekel Tavares) ouviu uma gravação da Orquestra Pró-Música do Rio de Janeiro, tendo como solista a cantora Ithamara Koorax, e pôde comparar com as gravações anteriores de Fagner. "É inacreditável, tratava-se da mesma canção", diz Alberto Hekel. Segundo ele, Fagner mudou apenas duas palavras. Desde sua gravação inicial, em 1973, "Penas do Tiê" (originalmente cantada por Fagner em duo com Nara Leão) teve diversas regravações: Joanna a gravou no CD Vidamor, pela BMG; a Philips a relançou duas vezes; e Nana Caymmi a canta em dueto com o próprio Fagner no CD "Amigos e Canções", também da BMG. Os filhos de Hekel Tavares, compositor da música, entraram com uma ação na justiça exigindo indenização por danos materiais e morais, devido à usurpação da obra de seu pai. O caso encerrou no final de 2006, quando Fagner foi condenado ao pagamento de direitos autorais referentes à musica "Penas do Tiê", além de determinar a inclusão de erratas nas obras não distribuídas e a divulgação da autoria da música debatida. Mas o pedido de indenização por danos morais foi julgado improcedente. Recentemente, uma coletânea intitulada "A arte de Fagner", lançada pela gravadora Universal (antiga Philips) trouxe a gravação original de "Penas do Tiê" já com o título de "Você", e creditada aos verdadeiros autores.

Sobre o disco "Manera Fru Fru Manera", afirma-se, ainda, que Fagner pegou de Belchior a letra de "Mucuripe" e ignorou que ela já estava musicada, fazendo uma nova. Contudo, apesar de todas as confusões já causadas, "Manera Fru Fru Manera" permanece em catálogo, por causa de seu incomensurável valor criativo e histórico, o que o coloca na lista dos melhores discos já lançados na música popular brasileira.

Um comentário:

Anônimo disse...

Para mim foi grata a surpresa de saber também existirem "Odisséias" na música popular brasileira, roqueira confessa e satisfeita com isso que sou, nunca me detive nas peculiaridades da citada MPB, muito menos quando o assunto era Fagner, sempre o enxerguei como uma criatura sem muita noção do que estava fazendo, mas enfim sempre acho tais cousas da maior parte das pessoas no mundo:)

Fiquei interessada na história muito bem contada e comentada por você, sempre com diversas singularidades a acrescentar, mudei minha maneira de ver Fagner e foi pra melhor... algo muitíssimo bom neste mundo devasso e devastado...

Beijos...

P.S. aguardo com certa ansiedade pela 2ª parte... Fagner x Caetano... quem vencerá no final?...hehehe!